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Carta aos Tempos
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A arte de não sucumbir ao nosso tempo

Ao menos por parte do eleitorado que compreende o quanto é tóxica a avalanche de informações que se sobrepõem diariamente umas às outras e que, assim, nos colocam em rota de colisão tanto com nossa resiliência emocional quanto com nossa capacidade de elaboração dos fatos e de seus efeitos, parece ponto pacífico que não será possível sobreviver aos próximos quatro anos sem importantes danos à saúde mental – individual e coletiva – e ao que nos resta, eventuais afortunados, de equilíbrio psicológico. Quem não sentiu minimamente ameaçadas suas estruturas psíquicas nos últimos tempos, quem não experimentou a menor perplexidade diante da sequência de eventos que inaugurou o ano novo, ou é convertido à igrejinha de fanáticos bolsonaristas ou não tem acesso à internet. De duas, uma.

Porque redundante, já não importa fazer número ao coro dos descontentes: a esta altura, ou falamos aos nossos próprios pares – com os quais em alguma medida já haveremos de concordar, e cuja interlocução tende a funcionar como mero exercício terapêutico, seja pela emulação de nossas indignações compartilhadas, seja pela expiação de nossas revoltas, que até aqui ainda não encontraram o meio pelo qual se traduzirão em evento concreto de resistência e oposição articuladas – ou jogamos milho às pombas (se preferirem, pérola aos porcos), o que significa que, para os devotos do Messias, o Jair, já não adianta demonstrar as relações perigosas que conectam tanto o pai quanto a prole às milícias; já não adianta demonstrar que o terrorista da Nova Zelândia admirava Trump, assim como os atiradores de Suzano adoravam Bolsonaro; já não adianta demonstrar que o Capitão é escatológico, que sua agenda de costumes é preconceituosa e que os ministérios estão chefiados por pessoas cujo habitat natural não deveria ser o asfalto árido de Brasília, senão os pastos verdejantes de onde nunca deveriam ter saído Olavo de Carvalho e seus asseclas.

Diante da barbárie, é preciso cuidar de nós mesmos com paciência, como quem prepara a terra para o próximo plantio, conhece os ciclos da chuva e o tempo das estações. Vamos sobreviver ao fluxo exaustivo das redes sociais e combater diariamente os retrocessos, não só políticos, mas também emocionais. Cultivar o amor e a amizade, fortalecer os vínculos que nos conectam a nós mesmos, arar a terra da resistência e lançar sobre ela pequenas sementes de alegria, que no futuro haverão de florescer e frutificar. Descobrir dentro de nós o sertanejo que somos. Euclides da Cunha, em uma das passagens mais conhecidas dOs Sertões, escreveu que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.” Ainda que nos falte a plástica impecável, a estrutura corretíssima e até mesmo a coragem para sair ao sol e trabalhar para a próxima colheita, não nos esqueçamos de que, sertanejos e brasileiros, somos, antes de tudo, uns fortes.

*Professor

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