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Ponto de Vista do Batista
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Tempo em que donas de casa cantavam I

Nylton Gomes Batista

Quem já ultrapassou a barreira dos oitenta tem muito o que se comparar com a realidade de outrora, embora, na avaliação do tempo decorrido, nos fique a impressão de que tudo, registrado na memória, aconteceu há não mais que poucos dias.

No ar, não havia sons mecânicos, muito menos eletrônicos, o que permitia a propagação de sons naturais e mais agradáveis. Do início do Tombadouro, ouvia-se, facilmente, o grito de uma criança ou o latido de um cachorro, na Rua do Rego (se não sabe, procure saber qual é a Rua do Rego e a origem do nome). O sino da igreja-matriz era ouvido da antiga Estação Dom Bosco e, hoje, há momentos em que não se o ouve, estando o ouvinte a pouco mais de cem metros da torre. O barulho mais evidente da atividade humana era o dos carros-de-bois, no trânsito entre a casa do produtor e a roça de milho, na madrugada e ao pôr do sol, no plantio e na colheita.

Donas de casa cantavam! E como cantavam! Enquanto afazeres domésticos seguiam o caminho rotineiro, vozes se elevavam a rivalizar com muitos ditos “artistas” da atualidade. Se não a música profana, o hinário católico era bastante rico, diversificado e dinâmico para dele extraírem-se as mais belas páginas do sentimento religioso; ao contrário de hoje, quando a música religiosa caiu na mesmice da profana: música “horizontal” ou “deitada”, uma irritante sucessão de notas repetitivas, dentre quatro ou cinco da escala, que mal escapam do pentagrama. Nas ruas, o som musical era feito por homens, por meio do assobio, embora se ensinasse, na escola, ser o assobio, nas ruas, uma prática não educada. Tais quais as mulheres cantantes, assobiadores se esmeravam na prática, alguns a apresentar características especiais, como o assovio em dueto, dando a impressão de ser emitido por duas pessoas distintas. Curiosidade a ser destacada é a similaridade entre alguns costumes de então com outros de agora. Nas pequenas localidades, jovens também se associavam em “grupos” ou “tribos”, assim como hoje se comportam na internet, nas redes sociais. De longe, membros de tais grupos se identificavam por meio de assobios curtos, previamente convencionados. Era a “enha”, tal como hoje, a impedir que estranhos se imiscuíssem. Isso era muito importante, quando e onde não havia iluminação pública, uma vez que tais grupos eram mais ativos à noite.

Mais ou menos assim era a vida, em pequena localidade interiorana, que podia ser qualquer uma; um jeito de viver que parecia brotar da própria terra. Nada ali se impunha de forma abrupta; tudo se insinuava como o vento que roça as folhas antes de tocar o rosto. O tempo corria, mas não atropelava. As pessoas trabalhavam, mas não esqueciam de viver. E, sobretudo, viviam sincronizadas num ritmo que parecia anterior ao próprio relógio, talvez herança genética dos ancestrais. E a vida seguia, exigente em suas necessidades.

Como ainda não havia o gás de cozinha, restava à população abastecer-se com lenha, responsabilidade recaída nas mulheres, por serem elas a estar em casa durante o dia. Munidas de ferramenta cortante (facão ou pequena foice) elas percorriam longas distâncias, em busca de material seco com o qual alimentar o fogo do fogão, desde que fácil de carregar (não muito peso), bom de queima e boa brasa, era a lenha juntada ao feixe, que era amarrado com embira, fibra natural e altamente resistente, constituída pela casca de uma árvore, bem conhecida das lenheiras. O feixe era carregado à cabeça, apoiado em rodilha de pano velho. A boa lenheira sabia que lenha escolher. Havia quem fizesse dessa atividade um meio de sustento. Donas de casa, de mãos firmes e olhar atento, tinham na lenha não apenas o combustível do fogão, mas também uma pequena fonte de renda, fornecendo a terceiros o que a mata lhes concedia.

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