Nylton Gomes Batista
O grupo de meninas adolescentes saía do antigo prédio da Escola Padre Afonso de Lemos em direção à rua do mesmo nome e, quando chegou à metade da travessia, teve a passagem cortada por caminhão basculante, que avançou e parou sobre a passagem destinada a pedestres. À parada do veículo seguiu-se o grito do imbecil na condução do mesmo: “vocês veem alguma faixa aqui?”, enquanto elas se desviavam para fora da passagem destinada a pedestres. Infelizmente, não é sempre que se pode desviar de alguém incapacitado na condução de alguma coisa! Talvez o “jumentóide” do caminhão se referisse à faixa zebrada que, ali, o ressalto com revestimento e cor diferenciados tem a mesma função: travessia com segurança para pedestres.
A estúpida cena fez-me rebobinar a fita da memória, na linha do tempo, para cair no início dos anos 40, quando Cachoeira do Campo estava bem distante da realidade de hoje. Nas ruas esburacadas, poeirentas ou barrentas e cobertas de mato, conforme a estação, o que havia era estrume com fartura, deixado por boiadas e tropas em trânsito, por carros-de-bois, por equinos e muares criados à solta. Nem se imaginava chegar tê-las congestionadas por veículos automotores e, muito menos, ver um condutor “zé ruela” qualquer a trancar passagem de escolares, como se sua fosse a rua! A frota de Cachoeira não passava de três ou quatro veículos. Para se ir de Ouro Preto a Belo Horizonte, e vice-versa, havia uma estradinha pouco mais que caminho de cabrito, que acompanhava a ferrovia, afastando-se desta apenas na estação Dom Bosco, no distrito de Cachoeira do Campo, para alcançar sua área urbana, passar por Amarantina e seguir até Itabirito, onde voltava a acompanhar a ferrovia até a capital. O deslocamento de Cachoeira para qualquer parte ia além de viagem; era uma aventura!
Meu primeiro deslocamento se deu quando tinha dois anos e éramos apenas dois irmãos, para visitar papai, internado na Santa Casa de Misericórdia de Ouro Preto, em razão de ter sofrido acidente de trabalho. Saímos durante a madrugada para embarcar, na estação Dom Bosco; eu, carregado pelo vovô, e o Ildefonso, que ainda não andava, no colo mamãe. Foi quando me maravilhei à vista de uma “maria fumaça” barulhenta, a puxar tantos vagões, num dos quais embarcamos e seguimos viagem. O segundo deslocamento foi logo ao término da Segunda Grande Guerra. Já éramos três irmãos e fizemos o mesmo percurso, no mesmo horário, a pé, até a estação Dom Bosco, de onde seguimos até Usina Wigg, no distrito de Miguel Burnier, onde morava o pai da mamãe, avô que vi pela única vez. A mamãe queria abraçar o irmão, pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que acabava de retornar do front, na Itália, mas não encontramos o herói da família, pois estava em viagem. Somente fomos encontrá-lo, dois anos mais tarde, em 1947, quando fiz o terceiro deslocamento a partir de Cachoeira e o primeiro, em veículo a gasolina. O tio já havia se casado, morava em Nova Lima e para lá seguimos, os quatro: a mamãe e nós, três irmãos.
A jardineira, já chamada ônibus, embora fosse a mesma coisa, partia de Mariana, na segunda-feira, de cada semana, o que o obrigava a família anfitriã a tolerar a visita por, pelo menos, uma semana. Se gostei das duas experiências, de trem, ansioso para repeti-las outras vezes, de jardineira, detestei, embora para um garoto de sete anos possa ser grande prazer viajar de ônibus. Embarcamos, às nove horas, em Cachoeira e só chegamos a Nova Lima, às duas da tarde; cinco horas de sofrimento até desembarcar, esbodegado. A jardineira não rodava, pulava; e pulava a ponto de passageiros baterem com a cabeça no teto! Não sei como alguém não tenha se machucado! Quando disse, acima, que a estradinha mais parecia caminho de cabrito, não estava a exagerar, pois, a jardineira, naquela estrada, como cabrito se comportava! Agora, imagine-se o estômago a acompanhar todo aquele corcovear de touro bravio, em rodeio, sob a influência do forte e irritante cheiro de gasolina; poucos não foram os que passaram a viagem a “chamar o juca”! Ô estradinha sem vergonha!!! Ô gasolina fedida!!! Ô viagem sofrida!!! Felizmente, foi uma só! Era assim que viviam cachoeirenses, na primeira metade do século vinte; faltava-lhes quase tudo, menos solidariedade!
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