A conversa girava em torno de assuntos diversos quando, de repetente, seu foco caiu em café ao se falar de aves e, entre essas, a coruja, grande apreciadora da polpa daquela rubiácea. Foi aí que se verificou o grande vazio entre as gerações na abordagem de referências locais. Não se trata de referências tidas por gerações antepassadas (falecidas), mas das vivas, acima dos sessenta anos, em comparação com as mais jovens.
Minha interlocutora, jovem adulta, surpreendeu-se ao tomar conhecimento de como é processado o grão do café até se chegar ao prosaico cafezinho indispensável à maioria dos brasileiros; e, creio que, na mesma proporção também eu me surpreendi. Esperava que algo tão corriqueiro na vida local, no período da minha infância, ainda fizesse parte do conhecimento das gerações mais recentes. Percebi meu engano quando ela externou o que acreditava ser: os grãos eram colhidos, secados, torrados e moídos, simplesmente assim. Rimos muito da grande distância entre o que ela imaginava ser e o que realmente é o processo de beneficiamento do café!
Cachoeira do Campo, dos grandes quintais então bem aproveitados, nunca foi centro produtor de café, mas quase todas as propriedades ostentavam cafeeiros ao lado das bananeiras e jabuticabeiras; estas últimas consideradas um dos símbolos locais. Em razão disso havia grande atividade cafeeira de natureza doméstica, geralmente conduzida por mulheres com muita participação de crianças nas tarefas mais leves. Grandes terreiros, à frente ou nos fundos das casas serviam para a secagem, imediatamente à colheita, no momento que os frutos estavam maduros, na cor vermelha. Não tenho lembrança de como era feita a separação da semente de sua casca e polpa, depois de tudo seco. É que, embora houvesse cafeeiros onde morávamos, só cuidávamos da colheita e da secagem, sendo confiado a terceiros o restante do proaté sua transformação em pó, pois a atividade principal da mamãe, afora o trabalho rotineiro de casa, era o bordado. Entretanto, lembro-me bem da etapa seguinte, na qual a semente dividida em duas partes, assim como o feijão, era separada do seu invólucro, o pergaminho (só agora tomei conhecimento de que este é o nome), semelhante a plástico duro, cor clara. Era feita no pilão, de porção em porção de grãos, depositada no fundo. Mediante socadura leve e maceração, efetuadas com soquete, chamado “mão-de-pilão”, feito da mesma madeira, as sementes se separavam do pergaminho e, em seguida, dispostas em peneiras para, mediante sopro, serem limpas de pequenos fragmentos do pergaminho e de outros corpos estranhos. Depois de tudo isso, que não era fácil, vinham as etapas finais, as duas mais difíceis, sacrificantes e cansativas: torra e sua conversão em pó. A torra, feita em panelonas de ferro, exigia da profissional, a torradora, bastante resistência ao calor intenso e muita atenção, pois o café podia se perder se passasse do ponto. Parece-me, não estou bem certo, que intensa fumaça branca (não confundir com o aviso da eleição do papa) era sinal indicativo de a torra ter atingido o ponto ideal. Ao atingir o ponto ideal, a panela devia ser retirada do fogo, rapidamente, seguindo-se deposição de seu conteúdo em grande peneira ou amplo estrado, onde devia ser espalhado para esfriamento natural.
Finalmente, vinha a etapa de socar o café no pilão até convertê-lo no pó mais fino possível, matéria prima para a tradicional bebida brasileira, item principal da primeira refeição da manhã, arremate do almoço, do jantar, pretexto para pausa no trabalho, bem como para início de bate-papo. Por ocasião dessas atividades, em Cachoeira, o ar, especialmente à tarde, era dominado pelo aroma do café a torrar ou a ser socado. Enquanto as narinas aspiravam o aroma, os ouvidos absorviam o tum, tum, tum, som da mão-de-pilão, batida compassadamente, e repetido em muitos pontos da localidade.
Confesso que nunca fui muito chegado a café e não gostava do seu aroma no processo de beneficiamento. Bebo café, mais por tradição ou por ver terceiros a beber, não por gosto, exceção quando tenho, para acompanhá-lo, fatia de queijo, meia cura! Entretanto, há que ressaltar a importância que teve o café, naquela época, quando a economia local era menos dependente, observando-se que, além de proporcionar algum ganho na economia doméstica, todo aquele trabalho gerava mais aproximação entre famílias, tendo como meio a ajuda mútua. O desenvolvimento industrial deu outro rumo à produção do café, mas ainda assim, percebe-se que sua produção não é tão simples e exige grande força de trabalho para que chegue à mesa doméstica e ao balcão comercial.