Nylton Gomes Batista
O tempo avança ou se avança no tempo, e, não se percebem variações que ocorrem no modo de ser humano. É como numa viagem de trem. A viagem se inicia e, pouco depois, o passageiro mergulha na leitura de um livro e se deixa levar pela trama a se desenrolar em sua imaginação a partir da leitura. Quando desloca os olhos, do livro para a paisagem lá fora, percebe que tudo mudou; não mais as árvores frondosas, os campos verdes e salpicados de cores variadas, porém árvores raquíticas, troncos retorcidos em paisagem árida. Mais ou menos acontece, quando se para, no meio no meio do turbilhão das atividades hodiernas, para dar um “replay” na memória.
É quase um susto, pois tudo mudou, tudo deixou de ser, afora a perda das referências humanas, algo que mais incomoda quando se chega à velhice. Nos recantos da memória coletiva há, por exemplo, um tempo em que a subtração de qualquer objeto, por menor que fosse seu valor, era encarada como grave transgressão. Meu era meu, teu era teu e dele era dele! Não se admitia o avanço de posse sobre a propriedade alheia! Há apenas algumas décadas, a ideia de roubo (bom registrar que, em bom português, “furto” e “roubo” são a mesma coisa) carregava o peso da lei, temporariamente, pelo tempo da pena imposta, porém, deixava marcas indeléveis, pelo resto da vida, na reputação do praticante. Era uma nódoa perene, da qual não se livrava nem sob a prática das mais virtuosas ações. Não poucas vezes, esses infelizes e arrependidos tinham que abandonar suas comunidades, em busca de paz e novo começo em região distante.
Em cidades médias e pequenas, o morador se levantava, pela manhã, abria a porta ou a janela e lá estavam o pacote de pão fresquinho e o frasco de leite, deixados pelos respectivos e zelosos entregadores matutinos. A mesma prática era seguida por fornecedores rurais, que se deslocavam, em meio a madrugada, à cidade, para a entrega de produtos hortifrutigranjeiros, previamente encomendados. Confiança mútua entre fornecedor e consumidor, bem como respeito dos transeuntes aos bens alheios! Esse costume era natural, regular, normal, em Ouro Preto, até os anos 60 do século passado. Em Cachoeira do Campo, onde então crianças podiam brincar na rua, era comum a transeuntes chamar à porta mais próxima, para entregar ou alertar sobre brinquedos esquecidos na rua; também cavaleiros, tropeiros e batedores, que precediam a passagem de grande boiadas, seguiam mesma prática. Que acham disso as novas gerações?
Naquele tempo, antes que pudesse se apropriar de objeto ou valor encontrado na rua, era dever moral certificar-se de que o achado não continha evidências de quem o perdera, se não estava sendo procurado pelo dono, para então fazer a devolução. Se não observado esse processo, se não feita a devolução, descoberto o verdadeiro dono, a posse pelo novo “dono” era apropriação indébita, o mesmo que roubo! Devolver o achado não era virtude, ato transcendente a merecer manchetes nos veículos de comunicação! Era obrigação, demonstração de respeito pelo próximo e testemunho da integridade enraizada na sociedade; simplesmente isso!
As casas não precisavam ser fortalezas dotadas de cercas elétricas, sistemas de alarme e vigilância visual-eletrônica, circundadas por muros e grades de ferro; e, na maioria das localidades, portas podiam permanecer abertas, da manhã à noite, sem qualquer temor para moradores. Diz-se, comumente, que não há bem que nunca se acabe e nem mal que dure para sempre. Mais ou menos isso era o que acontecia e é o que acontece, afinado em outro diapasão! Vivia-se no paraíso e nem se sabia! Ansiava-se pelo novo, pela modernidade, pelo luxo e pelo conforto distantes, sem saber que, além do valor intrínseco a ser pago em moeda, havia um custo imaterial bem mais pesado, configurado na decadência moral e consequente relativização do crime, seguida pela inversão de valores, pela desconfiança mútua, pelo medo da perda, pela perda da paz. Era a vida mais tranquila, sem muitas exigências, além das básicas, tempo para sonhar e para criar, oportunidades para SER, sem ter que TER, mas o ser humano é um eterno insatisfeito. Apesar da incoerência, é bom que assim seja!
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