Hoje, 10 de abril de 2020, Sexta-feira da Paixão, escrevo enquanto ouço música fúnebre, único gênero ouvido pelo rádio, nesse dia, em minha infância e que aprecio sem qualquer morbidez. Lá fora, só o silêncio, não por respeito religioso observado no passado, porém, por medo e angústia, sentimentos reais trazidos pela pandemia do COVID-19, surgida do novo coronavírus, na China, final de 2019. Em meus oitenta anos de vida, nunca imaginei, nem diante de filmes catastróficos hollywoodianos (outra coisa que aprecio) que viveria dias como estes, sombrios e angustiantes para muita gente, em todo o mundo. Ainda bem que a experiência se dá agora, quando nada mais nos assusta. A vida nos ensina.
Felizmente, com os requeridos cuidados, sinto-me bem, sem qualquer medo que, pode acossar tanta gente exposta ao perigo, por dever de ofício ou profissão, especialmente os envolvidos na malha dos serviços de saúde, das funções mais simples aos diretores. Devido à idade alcançada, boa saúde – graças a Deus – e não mais no exercício de qualquer atividade, que me force à exposição, estou tranquilo, em condições de observar e registrar o que penso.
O mundo buliçoso, com pressa nos ganhos, rápido nas idas e vindas, físicas ou virtuais, imperativo no que quer e no que não quer, de repente, se vê paralisado, improdutivo, de pés e mãos atados, sem o quê e como fazer. A hecatombe nuclear, por muito tempo imaginada e com temor aguardada, não veio, mas, em seu lugar, aí está um diminuto ser microscópico, que chegou e, sem aviso prévio, paralisou o mundo, cerceando a humanidade em sua mobilidade e atividades produtivas. O que ainda se faz no mundo é, na prática e exclusivamente, combater a pandemia. O que se exige além disso, em pelo menos cinquenta por cento, é atenção especial à mesma doença, incluindo-se aí o alimentar-se, responsavelmente, ato considerado entre os principais preventivos, ao lado da higiene das mãos, proteção ao aparelho respiratório e distanciamento social. Que paradoxo descomunal!
O ser humano, dotado de tantos poderes contra si próprio, capaz de destruir seu próprio habitat em questão de horas, também capaz de solucionar os problemas mais complexos ou construir as mais incríveis máquinas, que já ousou deixar suas marcas além deste planeta e se prepara para visitar outros, quiçá, para algures se transferir, não tem como contra-atacar o diminuto e invisível que o ameaça. A única defesa conhecida e confiável é o distanciamento entre os indivíduos. Contudo, não é primeira vez que a espécie humana se vê acuada diante de inimigo tão terrível, capaz de exterminar milhões de vidas como foi a famosa e triste “gripe espanhola”, em 1918.
Em minha primeira infância, na troca de informações entre os meus pais sobre a Segunda Grande Guerra, que se desenrolava na Europa, muito ouvi também sobre o que fez a gripe espanhola no Brasil. Em minha família havia muita atenção e preocupação com as ações bélicas em curso, porque a mamãe tinha um irmão, em luta, no front da Itália. Se não tinham experiência direta com a guerra e seus mortos, tinham lembranças dos horrores da “gripe espanhola”. Papai tinha apenas seis anos de idade, quando a epidemia atacou, mas o ouvido por ele deixaram impressões tão fortes que ele as guardou para o resto da vida. Segundo o que ele teria ouvido, nas pequenas cidades, nem tanto, mas nas grandes cidades, pessoas morriam como moscas; famílias inteiras desapareciam e seus corpos somente eram encontrados depois que vizinhos abriam as casas silenciosas; o serviço funerário não dava conta dos sepultamentos e em razão disso, cadáveres era depositados nas calçadas, para posterior remoção; a polícia ordenava sepultamento de cadáveres a homens, razoavelmente, robustos encontrados na ruas.
Interessante observar a capacidade brasileira de fazer piada e zombar da própria desgraça. Naquela época, conhecimento e uso da eletricidade ainda eram incipientes, fora das cidades mais desenvolvidas. O povo do interior só sabia dela por ouvir falar, mas a mamãe tinha na memória gracejos então contados. Um deles dizia que a tal eletricidade, capaz de dar mobilidade a tudo, seria usada para animar defuntos, fazendo-os, eles próprios, se dirigir ao cemitério, uma vez que os coveiros tinham sido levados pela gripe. Com isso, despois da pandemia, a profissão de coveiro desapareceria. Seria a vingança dos mortos contra os que os enfiaram debaixo da terra.