É Sexta-feira da Paixão, e, dolorosamente, um silêncio enche-nos os ouvidos, como nas mesmas sextas-feiras do passado, embora a tão falada viagem no tempo não seja realidade, pelo menos, para os mais comuns dos mortais. Naquelas, o silêncio era forçado pela fé, pelos costumes, pela tradição, enquanto nos templos se desenrolavam complexos cerimoniais, diante de fiéis absortos nas celebrações dos mistérios da Paixão do Cristo. A língua da Igreja ainda era o latim, o que, paradoxalmente, parecia dar mais sacralidade e pompa aos rituais, todos realizados à luz do dia, à exceção do Descendimento (e respectivo sermão) e Procissão do Enterro, sempre à luz da lua cheia, quando o tempo permitia, é claro.
Na sexta-feira, pela manhã, avançando para a tarde, a cerimônia era longa e tão complicada, não só em palavras, mas em procedimentos, que a maioria dos padres não a sabia de cor. Lembro-me de um homem baixinho, cuja cara engraçada, olhos apertados (não era oriental), parecia sempre sorrir. De dois em dois anos, ele estava em Cachoeira, por ocasião da Semana Santa; dois em dois anos porque, embora não faltassem padres, pois as Escolas Dom Bosco os tinham com sobra, as celebrações não se realizavam anualmente, devido aos altos custos. Segundo informações, obtidas na época, a participação do homenzinho nas cerimônias era fundamental, porque ele conhecia toda a liturgia da Semana Santa. Por essa razão, ele não parava, andava de um lado para outro, em contato com celebrantes e participantes. De vez em quando, sinais discretos eram dados por ele.
Também de dois anos, à mesma época e a pedido, a prefeitura de Ouro Preto executava limpeza das ruas. Em alguns pontos, como o final da Rua Santo Antônio, o mato estava tão crescido que se podia fazer lenha. Mas, voltemos à Semana Santa.
A sexta-feira era de jejum, silêncio e muito respeito, não se podendo falar alto, muito menos gritar, cantar, acionar buzina ou qualquer coisa barulhenta; tolerava-se o barulho dos automóveis, ainda raros, por terem se tornado necessários. Também não havia a televisão e do rádio só se ouvia música clássica. Dos antigos sons silenciados nesse dia, sobra apenas o do sino, substituído pelo barulho (incoerente não?) matraca. As donas-de-casa, durante a sexta-feira, só faziam o essencial, executando, na véspera, a maioria das tarefas.
Hoje, com exceção de um ou outro “jeca-do-asfalto”, que a ninguém respeita e, por isso, perturba a todos, o silêncio impera, como se o tempo tivesse se recuado, mas, infelizmente, é por razões nunca dantes imaginadas, chegando ao ponto de não se terem realizadas, publicamente, nem as solenidades da chamada Sexta-feira Maior. Devido ao perigo de contágio pelo novo coronavírus, que tem aumentado recentemente, as celebrações se tornaram virtuais, assim como o contato entre tantos familiares, afastados entre si deste o início desta pandemia. O fato é que até as exterioridades da religião sofreram mudanças, para que menos pessoas se contaminem e menos pessoas morram. Felizmente, para os que sabem, rezar ou orar continua algo inalterável, de foro íntimo, como sempre foi!
A tragédia, que se abateu e abala o mundo, além das sequelas da própria doença, promete deixá-las também nos usos, hábitos e costumes de cada povo, para que não mais se apague da memória coletiva o que têm sido esses momentos angustiantes, a forma como se reage, evita ou combate a doença. Essa será a lembrança do sensato e do sentimento humanitário, mas a se contrapor haverá a lembrança da vilania, do lado que torce pelo pior. Como exemplo, cite-se a manifestação, em Madrid, dia 2 último, de brasileiros que, entre outras coisas, acusam o governo federal de ter uma estratégia institucional de propagação do vírus. Ao mesmo tempo, dentro do Brasil, a imprensa independente, não vinculada a corporações midiáticas (que não mais têm as tetas de onde sugavam vitalidade financeira) dá informações de que vacinas distribuídas pelo governo federal superam em quase cinquenta por cento as vacinas aplicadas. É que alguns governos estaduais estariam a estocar vacinas. Por quê? De acordo com decisão do STF (que parece governar de fato) cabe aos estados e municípios as ações diretas de combate à pandemia. Pergunta-se aos lá de fora: quem tem estratégia de propagação do novo coronavírus?