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Ponto de Vista do Batista
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A vida segue… embora agourem o contrário

O calendário marcava 21 de setembro de 1947, uma manhã ensolarada que combinava com o espírito alegre da comunidade cachoeirense por celebrar, naquele dia, a festa de sua padroeira, Nossa Senhora de Nazaré. No primeiro banco, entre duas meninas caracterizadas como anjos, na missa das sete, uma figurinha de terno branco engomado, como se usava na época, vivia o momento especial de sua primeira comunhão. A igreja-matriz, devidamente ornamentada, estava lotada pelos fiéis em número dobrado por força da presença de muitos que, um dia, se foram em busca do sustento em outras cidades. Ao garoto parecia que tudo aquilo estava sendo realizado especialmente para si, pois desde muito vinha sendo preparado por sua mãe, antes de ser entregue aos cuidados da professora e catequista Efigênia de Brito e, finalmente, submetido à avaliação do pároco, o padre Carmélio Augusto Teixeira. Parecia que lhe voltavam todas as atenções dentro da igreja!  Mais emocionado ainda ficou quando, à saída em meio ao burburinho formado no adro, sua mãe o levantou nos braços, colou sua face à dele, exclamando: – oh! meu Deus, pensei que este dia nunca fosse chegar! – e ele sentiu no rosto as lágrimas maternas.
Naquele momento, o menino não entendeu bem a exclamação de alívio de sua mãe. Só foi entender quando ouviu a explicação às amigas. O filho era tão debilitado, que ela não tinha esperanças de vê-lo alcançar os 7 anos. Antes de ele nascer, dois haviam morrido; o primeiro, no dia que completava 2 anos, sob suspeitas de envenenamento criminoso, e, o segundo com apenas alguns meses de idade. Do sofrimento materno pela perda dos dois, o terceiro filho herdara uma saúde bastante debilitada. Com aquela idade, seu peso não ultrapassava os doze quilos e meio.  Frequentava a escola normalmente e, embora não fosse dos mais brilhantes, também não figurava entre os de menor aproveitamento. A família era pobre, o pai operário, mas o garoto concluiu os quatro anos da escola primária e, dois anos depois, por obra do Pe. Luiz Zver, diretor do Oratório D. Bosco, foi fazer o curso ginasial. Continuava ainda esquelético, muito pálido e extremamente tímido, sendo por isso alvo de muitas zombarias. Dentro do Colégio D. Bosco, então praticamente autossuficiente, um dos zombeteiros era o administrador do setor agropecuário, conhecido como “seu” Chicão. Na hora do recreio do almoço, enquanto “fazia o quilo” em bate-papo com Joaquim de Lemos (secretário), Vítor Campos (barbeiro), Moisés Galante (espécie de engenheiro prático), padre Baêta Neves (professor de Francês e de História Geral), “seu” Chicão azucrinava o garoto com previsões pessimistas: – “Você não deveria estar estudando! É pura perda de tempo, pois não alcançará nem a idade de se apresentar ao Exército. Seu brinquedo deveria ser tão somente a bolinha de gude, e, olhe lá! Você, garoto, parece nem ter sangue; é uma aberração da natureza” – Numa das vezes em que ele fez isso, o rapazinho não se conteve e advertiu: – olhe que os fortes também morrem e os fracos ficam para contar a história! –  O homem jogou a cabeça para trás e explodiu numa barulhenta gargalhada de escárnio. Na manhã do dia seguinte, a primeira notícia que o pequeno estudante ouviu do secretário, Joaquim de Lemos, foi que o “seu” Chicão acabara de falecer. Se tivesse ultrapassado os 50 anos, era pouca coisa. E não haviam se passado nem 24 horas desde a última zombaria e consequente advertência.
O rapaz continuou a desafiar as possibilidades calculadas por terceiros. Ao Exército teve que se apresentar três vezes e foi dispensado, aos 21 anos, por incapacidade física. Media 1,63m e pesava apenas 44 quilos!
Pois bem, a vida que contrariou toda a expectativa pessimista, quanto à sua duração, é a do autor desta coluna. Ao contrário do que previu o zombeteiro “seu” Chicão, completa agora, em 25 de janeiro, 80 anos de idade, já superando algo em torno de 30 anos a vida de seu agourento. Assim como agradeço a Deus, a cada momento, pela oportunidade da vida, devo agradecimentos também aos que comigo convivem ou conviveram: os familiares, os amigos, os conhecidos, os anônimos, incluindo-se até mesmo os que se fingiram amigos por muitos anos e, recentemente, revelaram-se os piores “traíras”. Que Deus os proteja!
De tudo isso, conclui-se que a vida é um dom precioso e misterioso cujos limites no tempo, nem em teoria, cabe ao homem determinar. Este texto é a atualização do aqui publicado há 20 anos.

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