O Liberal
Últimas Noticias
Itabirito
8 min

Nova lei em Itabirito, que limita destinação de recursos públicos para shows, reacende debate sobre liberdade de expressão

Nova lei em Itabirito, que limita destinação de recursos públicos para shows, reacende debate sobre liberdade de expressão

Imagem: Matheus Matta

Por: Victória Oliveira

Mesmo sem citar nenhum ritmo ou expressão musical, nova norma preocupa MCs locais, que temem impactos desiguais

A cidade de Itabirito tem agora uma nova lei que proíbe a destinação de recursos públicos municipais para eventos e apresentações culturais que “promovam o crime organizado, o uso de drogas ou conteúdos considerados inadequados”. A Lei nº 4.257, proposta pelo vereador Danilo Donato (PL), o Danilo do “Só Por Hoje”, foi aprovada pela Câmara Municipal e sancionada pelo Executivo. A medida reacendeu discussões sobre liberdade de expressão artística e gerou preocupação entre artistas da cena hip hop local. O Liberal conversou com o vereador Danilo, autor da proposta, e com os MCs Du P.A – que esteve acompanhado de Tata MC e Doka (O Otimista) durante a entrevista – para reunir diferentes visões sobre a nova legislação, que, segundo os artistas, mesmo sem citar diretamente estilos musicais, pode afetar de forma desigual músicos periféricos e suas expressões.

De acordo com o texto, fica vedada a contratação com verba pública de artistas, bandas ou grupos cujas músicas ou performances incluam apologia ou incentivo ao crime organizado, tráfico de drogas, facções criminosas ou à violência; conteúdo de natureza sexual explícita; incitação ao uso de drogas ilícitas ou práticas ilegais. A proposta tem semelhanças com o projeto de lei conhecido nacionalmente como “Lei Anti-Oruam”, em referência ao MC carioca, e, assim como no cenário nacional, artistas de Itabirito apontam que legislações desse tipo podem acabar marginalizando ainda mais gêneros periféricos como o rap, o funk e o trap.

“É importante destacar com clareza: o projeto não menciona funk, rap, trap, sertanejo ou qualquer outro estilo. Ele não tem como foco os MCs ou qualquer categoria de artista. O critério é exclusivamente o conteúdo das letras”, explicou o vereador Danilo Donato. “O objetivo é garantir responsabilidade e coerência no uso do dinheiro do contribuinte”.

Mas, para os MCs da cidade, na prática isso pode ser diferente. Du P.A., um dos organizadores da Batalha da Estação, que há cerca de 10 anos promove disputas de rima na principal praça de Itabirito, criticou a medida publicamente em suas redes sociais e manifestou suas preocupações para o jornal: “A gente já lida com poucas oportunidades. No ano, me preparo para ser chamado umas duas vezes de forma individual, uma vez em coletiva e mais duas na batalha, às vezes na Consciência Negra. É pouco, mas já dá uma oportunidade para a gente. Com essa lei, mesmo sem citar gêneros, a gente sabe onde o calo aperta”.

Motivação para a nova lei

Um dos questionamentos dos MCs é sobre a motivação da criação da lei em Itabirito. O vereador Danilo afirmou que “o projeto foi construído a partir de manifestações de pais, educadores, lideranças religiosas e comunitárias que expressaram preocupação com o uso de verbas públicas para financiar apresentações que contenham apologia ao crime, tráfico, violência ou sexo explícito. Não se trata de uma reação a um caso isolado”. Ele também acredita que algumas letras “podem contribuir para a naturalização dessas práticas na sociedade, especialmente entre os jovens”.

Du P.A., no entanto, acredita que possa haver uma motivação midiática, já que o assunto está em alta. Segundo ele, se a preocupação é com a juventude, os vereadores, de um modo geral, poderiam estar mais presentes no cotidiano das escolas, dos bairros e até mesmo nos cenários culturais da cidade, inclusive nas batalhas de rima. “Sinceramente, eu não vejo qual juventude eles estão presenciando, até porque o movimento que a gente faz – a batalha – é um movimento que a juventude está presente. Eu nunca vi nenhum deles colar (…) Eu não vi eles colocando essa lei em debate. A gente nem ficou sabendo disso. Eu acho que, se eles estivessem realmente preocupados com os jovens, procurariam ouvi-los mais.”

Critérios para análise das letras e apresentações

A subjetividade dos critérios utilizados para definir o que se configura como “apologia” é um dos principais receios entre os MCs. “Tem que ter uma análise disso. Quem escreve tem o direito de se defender. (…) Tudo tem que ter interpretação, e a minha interpretação pode ser diferente da do outro. Alguém pode interpretar, mas precisa comprovar. E acho que esse nível, essa proporção, que é o que tinha que ser passado, não foi passado”, disse Du P.A.

O MC Doka (O Otimista), também questionou a avaliação das letras e apontou que teme incoerências no tratamento dado a diferentes estilos. “O sertanejo fala sobre o uso de álcool, suicídio, traição, conteúdo sexual, relações abusivas… mas isso aí pode, porque é o que o povo tá ouvindo, porque a batida leva”. Du P.A. complementa: “A liberdade de expressão está sendo lesada — não só a minha, mas a de vários artistas da cidade. Se fosse assim, há uns anos atrás Raul Seixas seria censurado. Será que seria?”.

O vereador defende que a aplicação da lei será baseada em fundamentos jurídicos já existentes. “A lei utiliza termos já amplamente definidos em outras normas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Penal”. Ele também explicou à nossa equipe que a regulamentação será feita pelo Poder Executivo.

“Há possibilidade de criação de comissões técnicas, garantindo transparência, segurança jurídica e participação social. O objetivo não é censurar, mas assegurar que conteúdos patrocinados pelo dinheiro público estejam alinhados a princípios constitucionais”, declarou Danilo.

MCs defendem direito à expressão com responsabilidade

Os artistas afirmam compreender que há responsabilidade nas mensagens que divulgam, mas pedem que isso não seja confundido com criminalização de vivências periféricas. “Nós acreditamos que todo artista da cultura hip-hop tem responsabilidade sobre aquilo que fala. Jamais aceitaríamos um artista nosso que escrevesse algo degradante para a sociedade. Mas também defendemos o direito de se expressar e explicar o contexto do que está sendo dito”, explicou Du P.A.

O MC também comentou sobre a importância do hip-hop em sua vida: “A cultura hip-hop veio pra trazer perspectivas e avivamento aos meus sonhos, tanto os individuais quanto os coletivos. (…) E o rap trouxe em si uma oportunidade e um direito de fala – que, em muitos locais, a gente não tem por diferentes motivos -, trouxe uma oportunidade de expressar a minha opinião de uma forma que ela pelo menos fosse registrada. Porque ser ouvida é outro nível, mas só de eu poder me expressar, expressar vivências da minha vida, eu já me sinto preenchido, com meu sonho sendo eternizado em linhas, deixando um legado”.

O vereador, por sua vez, revelou a nossa equipe que é fã de vários mcs, ‘que não fazem apologia’, e afirma estar aberto a escutar os artistas e propõe novos caminhos: “Respeito profundamente a arte urbana e os MCs da cidade. O projeto não tem a intenção de excluir ou marginalizar nenhum artista – muito menos os jovens da periferia que expressam sua realidade com talento e criatividade. O que buscamos é equilíbrio: fomentar cultura com consciência social”.

Próximos passos

De acordo com Danilo, a contratação de artistas continua possível, desde que o conteúdo esteja em conformidade com as diretrizes legais. “Estou, inclusive, aberto ao diálogo com esses artistas para pensarmos juntos em caminhos de valorização e inclusão”, completou. Ele também comentou sobre projetos que podem estar por vir: “Estamos estudando a criação de editais públicos para apoio à produção de jovens talentos e oficinas de formação em música, poesia e produção cultural”.

“A gente vai responder com música”, disse o MC, já ouvindo um beat para compor mais uma canção. Segundo ele, também haverá outros pronunciamentos nas redes sociais. Os artistas propõem, por fim, uma discussão na Câmara Municipal para esclarecer quais são esses parâmetros, e o vereador afirmou ao nosso jornal que está aberto ao diálogo. “Estou à disposição para construir pontes, ouvir e continuar trabalhando por uma Itabirito mais justa”, concluiu Danilo.

Todos os Direitos Reservados © 2025

Desenvolvido por Orni