Ela se sentia ao mesmo tempo feliz e apreensiva. Em suas orações, agradecia e pedia ajuda a Deus, ao mesmo tempo.
Depois de meses desempregada, conseguira um emprego digno, cujo salário não era alto, mas o suficiente para a sua sobrevivência e quitação dos compromissos e dívidas assumidas durante os meses desempregada, devido à pandemia.
Era uma pessoa honesta, e por isto tinha crédito na cidade, conseguindo “segurar as pontas” nos momentos de dificuldade, pois todos sabiam que ela não agiria de má fé e assim que pudesse, cumpriria com suas obrigações.
Por uma ironia do destino, conseguiu um emprego exatamente na fase mais letal do vírus, e a natureza do seu trabalho não permitia realização on line, fazendo com que tivesse de sair todos os dias.
Com fé em Deus e fazendo a sua parte em termos dos cuidados necessários, começou os trabalhos. Era viúva e tinha dois filhos para sustentar, seguiu agradecida e consciente.
O primeiro dia em que saiu de casa, após realizar rigidamente a quarentena, dois vizinhos, batendo papo na rua, zombaram de sua máscara (estavam sem, naturalmente) e ela se limitou a olhar para eles, com piedade.
Seguiu seu caminho, foi recebida com carinho pelos colegas de trabalho, todos com os cuidados exigidos pelo momento, e assim criou a sua rotina. Os filhos, já em idade em que podiam ficar sozinhos e ainda sem as aulas presenciais, aguardavam seu retorno e ajudavam nas tarefas de casa.
Assim ela prosseguiu por meses, sempre esperando o fim da pandemia, que em lugar de diminuir, ficava mais assustadora a cada dia. Nos finais de semana, impreterivelmente, ouvia sons de festa, pessoas cantando alto, bebendo, e tinha dificuldades em explicar aos filhos o momento que atravessavam. Se era tudo tão restrito, porque tanta gente participava de festas, indistintamente, não importava que dia fosse, estavam sempre felizes, cantando, bebendo, o que tinha para comemorar tanto?
Os filhos, vendo amigos brincando pelo bairro, em uma vida “normal”, curtindo “férias” que não acabavam, não entendiam porque eles tinham tantas restrições, saíam tão pouco e não podiam “curtir” também.
Em uma sexta-feira, ao chegar do trabalho, não ouviu as algazarras de sempre, que começavam ao entardecer da sexta feira e costumavam seguir até o domingo. Não sentiu o cheiro da carne do churrasco das festas semanais e a casa dos vizinhos festeiros estava fechada.
Entrou em casa e o filho mais velho chorava. Contou que a mãe do amiguinho que brincava na rua, esposa do vizinho que sempre zombava dela, havia falecido, vítima do vírus. Abraçou o filho e foram rezar juntos. Lembrou-se, muito triste, que há meses não via a falecida, moradora da casa das festas de que ela não participava.