O carnaval ou, pelo menos, o que resta dele historicamente, ficou para trás e estaríamos agora, seguindo pela mesma linha profana, na fase da ‘mula-sem-cabeça”. Mas, também ela desapareceu do panteão dos mitos populares tupiniquins, ocupado seu lugar por alienígenas culturais. Daí conclui-se que, também nesse aspecto, cada geração tem a “mula-sem-cabeça” que merece. Da ingenuidade, quase angelical, a cultura popular salta aos píncaros do pseudoconhecimento, novidadeiro por si só e causador de confusões, sem que nem pra quê. Não mais se fala na “mula-sem-cabeça”, esquecida, que ficou no passado, porém outras “mulas-cabeça-sem-cabeça”, sequelas do carnaval, ainda ficam a confundir cacholas; são as “mulas-sem-cabeça” da má informação, do medíocre transubstanciado em arte, da ridicularização da fé, da dessacralização do divino.
Do último reinado de Momo, primeiro e único, sobrou a confusão em torno da esdrúxula comissão de frente de uma escola de samba paulistana; logo São Paulo, cuja tradição de carnaval soma poucos anos. Pelo menos até os últimos anos setenta, com exceção de pequena manifestação do gênero, num bairro afastado da Zona Leste, a capital paulista não tinha carnaval de rua. Enquanto o Brasil foliava, São Paulo trabalhava! São Paulo não podia parar! O carnaval estava restrito a espaços fechados e, quanto a isso, aproveitava-se tudo. Retiravam-se cadeiras até das salas de cinema e os foliões eram postos a sambar naqueles tobogãs! O carnaval de rua paulistano ainda se constituía de resquícios do entrudo, o carnaval primitivo, que alguém já quis trazer de volta a Ouro Preto! Quá, quá, quá, quá, quá!
Quando o paulistano descobriu o carnaval, este já estava em franca decadência. Bem, vamos aos fatos do momento. Causou um choque, impactou a religiosidade do povo e entre cristãos foi um escândalo a composição e coreografia de uma escola de samba, que pretendeu representar a luta entre o bem e o mal, simbolizada num confronto entre as figuras de Jesus e do demônio. Crê-se ter sido essa ideia do coreógrafo. Entretanto, para o povo em geral, a maioria simples e sem formação adequada, pareceu tratar-se de luta de satanás contra Jesus, no sentido religioso e com resultado favorável ao primeiro. Como manifestação artística foi um belo espetáculo, que caberia bem num palco teatral mas, nunca num desfile carnavalesco! Em sendo carnaval, organizadores deveriam ter evitado tema, que pudesse causar mal estar dentro de grupos religiosos. – Assim, não! E a liberdade de expressão como é que fica? – Já se ouvem os protestos. – Assim, sim! pois a liberdade de expressão é direito garantido desde que não entre em choque com direito de terceiros, no caso, o direito a ter sua crença religiosa respeitada. Ninguém está obrigado a professar uma fé, e, se professa é-lhe garantida a liberdade de escolha. Quanto ao respeito, a qualquer uma delas, é obrigação de todos, desde o beato radical ao ateu convicto.
Liberdade de expressão não significa falar ou fazer tudo que queira, em todo lugar, a qualquer momento e circunstância. Quem pensa o contrário que experimente repetir num tribunal os mesmos impropérios gritados num botequim! Quando se planejava a citada manifestação carnavalesca, faltou a pergunta: isso poderá chocar algum grupo religioso? Positiva a resposta, melhor teria sido mais atenção ao “desconfiômetro”! Por muito menos, houve uma carnificina em Paris, em janeiro 2015, quando se tentou ridicularizar o Islã! Por isso mesmo, nem tudo que este velho escriba pensa é dito aqui ou em qualquer outro lugar! O pensamento é livre, mas sua expressão deve ser limitada pelo bom senso!
Interessante observar que entre a dita comissão de frente e o enredo não havia nenhuma correlação; a coreografia estava completamente fora do contexto! Por que então se escolheu tal tema? Com tanto assunto a ser explorado no carnaval, melhor seria aos carnavalescos o não envolvimento de assuntos religiosos nos folguedos momescos. Carnaval é para divertir, não para polemizar e, muito menos, para escandalizar. Muito sensatas as portarias normativas do carnaval, antigamente promulgadas pelos juizados das comarcas. Entre outras coisas eram expressamente proibidas as fantasias, máscaras, alegorias ou qualquer manifestação alusivas à religião; e tudo se cumpria fielmente. Os mais afoitos, que da história só sabem por ouvir dizer, dirão que era a censura do regime militar. É mais uma conversa fiada, forjada para torcer a história a seu favor, pois tais proibições foram bem anteriores ao período por eles renegado.