Exposição pública de pessoas com fins de comércio, já tivemos no Brasil por três séculos, do 16 ao 19, causando hoje uma mistura de sentimentos, desde vergonha até revolta sincera e válida, porém fora de época, levando tudo isso a um impróprio sentimento de culpa, que ficou lá no passado com os atores daquele tempo, cuja moral não era a atual e não era nossa. Por cerca de trezentos anos pessoas, de ambos os sexos e faixas etárias diversas foram arrancadas, mediante engambelação, de seus lares, de suas tribos, na África negra, sendo trazidas para o Brasil em navios, especificamente para esse fim construídos. Vinham amontoadas nos porões, como se animais fossem, sem o mínimo de compaixão, normalmente voltada ao semelhante dentro da mesma espécie.
Nos portos, onde eram desembarcadas essas pessoas, havia o mercado onde elas eram expostas e comercializadas, variando os preços de acordo com vigor físico de cada uma, o gênero, a faixa etária, as habilidades demonstradas, etc. Os mais fortes e robustos, cobiçados para os trabalhos mais pesados, podiam ser levados a leilão, modalidade na qual o traficante auferia maior lucro. Os interessados na compra tinham o direito de examinar, minuciosamente, cada pessoa em exposição, apalpando-lhe músculos para verificar a rigidez, conferindo dentes, examinando genitais à procura de doenças, pesquisando tudo mais que pudesse revelar algo não desejado, na “peça”, como era adjetivada cada pessoa destinada à venda.
Em rápidas pinceladas, este era o cenário de um mercado de escravos, que funcionou em cada porto negreiro, no Brasil colonial e no Brasil independente até o segundo império. Aos olhos de hoje, tudo isso é revoltante, sentimento não válido para aquela época, cuja moral era outra. O pensamento do Homem evolui ao longo do tempo, o que faz que em cada época prevaleça uma moral, tão diferente da anterior e mais ainda da que virá em seguida. Cabe aqui um lembrete aos julgadores da história que, um dia, daqui a cinquenta ou cem anos, também poderão ser julgados pelo que pensam, falam ou fazem, porque o hoje correto, amanhã poderá não ser.
O comércio de pessoas teve seu tempo com aprovação legal, lamenta-se agora, com aceitação pela maioria, poucos a considerar a desumanidade da escravidão, a crueldade dos meios para mantê-la e tudo o mais a bater de frente com os princípios daquilo que se chama civilização. Diante do que hoje se cultua, foi um erro; um erro que ficou lá atrás e cuja culpa não cabe à sociedade atual. Só se esperava que mais não se repetisse, nem em parte. Mas, ainda que com outra conotação, mas prevalecendo a humilhação da pessoa humana em situação de risco, ainda se pratica ou, pelo menos, uma vez se praticou a exposição de pessoas com o fim de dar-lhes um destino.
É o que denuncia a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef) com “indignação e repulsa ao evento organizado pela Associação Matogrossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara) e pela Comissão de Infância e Juventude da OAB do Mato Grosso, ocasião na qual crianças e jovens de 4 a 17 anos foram expostas em uma passarela de um shopping da capital do Mato Grosso por estarem “aptas” à adoção.”
É difícil de se crer que tal fato tenha acontecido, no momento atual, numa sociedade tão crítica e julgadora com relação à escravidão praticada por nossos antepassados. A exibição dos infantes e adolescentes só difere da exibição dos africanos, nos mercados negreiros dos portos, porque naquela talvez se tenha disfarçado a ignomínia com ares de festa, no shopping, e o destino das crianças e adolescentes seria a doação e não a venda. Crianças e jovens, por muito bem cuidados que tenham sido, foram tratados como objetos, da mesma forma que as pessoas africanas, trazidas à força para ser escravizadas. Gente é gente em quaisquer circunstâncias e condições sociais! Para tais crianças e adolescentes já muito pesa o fato de não terem uma família como referência de origem e precisam de uma que as adote, até que sejam cidadãos e cidadãs independentes. Mesmo entre animais o filhotinho se desenvolve melhor sob atenção especial da mãe biológica e, em muitos casos, também do pai. Muito mais necessária é essa relação do infante humano dentro de sua família. Quando a família original inexiste ou se omite e entra a adotiva, sabe-se dos preconceitos, ocultos ou escancarados, em relação aos disponíveis para a adoção, principal motivo de muitos sobrarem nas casas que os acolhem. Portanto, a exibição das crianças e adolescentes foi uma humilhação a mais e uma violação de seus direitos humanos, sim.