Valdete Braga
Houve um tempo, não muito distante, em que ler era mais do que decodificar palavras. Era escutar o que não foi dito, sentir o que não foi escrito, imaginar o que o autor ousou esconder. A interpretação era uma dança entre leitor e texto, às vezes lenta, às vezes frenética, mas sempre humana. Esta interação fazia a leitura ser algo mágico e proveitoso, levando o leitor a viajar em sua própria imaginação.
Hoje, os textos chegam prontos, lapidados por inteligências artificiais que não erram vírgulas, não tropeçam em metáforas e não se perdem em desvaneios. São perfeitos, e, talvez exatamente por isto, silenciosos. A perfeição impede contestação, não admite interpretações diversas, tornando a leitura objetiva e fria.
A IA escreve com precisão cirúrgica. Explica tudo, traduz tudo, resume tudo. Neste cuidado em facilitar, ela nos tira o esforço de fazer o cérebro pensar, de voltar ao parágrafo anterior, de discutir com o autor, discordar, duvidar. Tudo nos chega mastigado, e o leitor, antes intérprete, se torna consumidor.
O impacto é visível, sobretudo entre jovens estudantes que, acostumados a receber tudo pronto, em conteúdos mastigados, perdem-se diante da ambiguidade. Em um mundo onde a IA escrever cada vez melhor, em termos objetivos, o desafio não é competir com ela, mas reaprender a ler, com dúvidas e curiosidade.
Textos escritos por inteligência artificial não exigem crítica nem o exercício de imaginação que uma máquina nunca conseguirá replicar. Por mais evoluída que ela seja, faltar-lhe-á sempre a característica humana que nos permite ler nas entrelinhas, sentir a intenção do autor, entender o que o texto sugere, sem dizer literalmente.
Se nos acostumarmos à máquina sem buscar o humano no que lemos, nos tornaremos máquinas também, apenas absorvendo informações sem processá-las ou senti-las. Isto não pode acontecer, precisamos aprender a utilizar a máquina a nosso favor, sem nos tornarmos escravos dela. Precisamos recuperar a nossa capacidade de humanizar nossos textos.
O problema não está na IA escrever, está em nós deixarmos de ler com profundidade. Está em aceitarmos que entender é apenas saber o que está escrito, e não o que está oculto. Está em perdermos o hábito de perguntar: “o que isso realmente quer dizer”?
A inteligência artificial não tem culpa, ela escreve o que é pedido a ela. O problema é que estamos pedindo mais e pensando menos, e com isto perdendo a capacidade de interpretação.
Ao interpretar, o leitor se torna co-autor, e não podemos abrir mão disto. Se o fizermos, não será a IA que nos substituirá, seremos nós que nos apagaremos, letra por letra, até restar apenas o texto. Um texto sem autor, sem leitor, sem alma.