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Entrevista: 17 anos Lei Maria da Penha

Entrevista: 17 anos Lei Maria da Penha

Por Karina Peres e Lucas Porfírio 
Nesta segunda-feira (7), a Lei Maria da Penha completou 17 anos. A legislação é considerada um marco na defesa dos direitos humanos das mulheres no Brasil e tem contribuído para que elas rompam com o ciclo de violência doméstica e familiar. Neste ano, a Lei passou por importantes mudanças e ficou mais rígida. Foi acrescentada, por exemplo, a possibilidade da concessão de medidas protetivas de urgência a partir do depoimento da vítima, devendo ser aplicada em todas as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Além disso, a Lei Maria da Penha não distingue orientação sexual, nem identidade de gênero das vítimas mulheres. Entretanto, o 16º Relatório Brasileiro de Segurança Pública revelou que 26 mulheres sofrem algum tipo de agressão a cada hora no Brasil. Os dados mostram que a Lei ainda tem muito o que avançar. E para falar sobre a importância e desafios enfrentados pela Lei Maria da Penha, O Liberal conversou com Nayara Luiza de Souza, que é pesquisadora do tema e mestra em Comunicação Social pela UFMG. Confira a entrevista na íntegra. 
O LIBERAL: Qual a importância da Lei Maria da Penha para proteção das mulheres brasileiras? 
Nayara: A Lei Maria da Penha atua com a nomeação de violências a serem combatidas o que auxilia as pessoas em situação de violência a identificar, por exemplo para falar de uma das atualizações mais recentes do código, que a manipulação psicológica é uma situação que cabe denúncia e da qual ela precisa se retirar e que existem aparatos do estado que pelo menos em tese oferecem esse apoio. A Lei também formaliza a responsabilização do Estado, dos governos estaduais e municipais, além de outras instituições como os meios de comunicação pelo enfrentamento da violência contra a mulher, o que envolve ações de educação de toda a comunidade. Outro avanço conquistado pela Lei Maria da Penha foi a instituição das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher que orienta que contenham serviços de atendimento psicossocial e de profissionais treinados para atender às mulheres vítimas de violência para evitar a revitimização, ou seja, para evitar que essa mulher reviva o trauma ou seja desacreditada quando procura por ajuda. 
O LIBERAL: Mesmo com a Lei, infelizmente a violência contra a mulher é uma realidade em nosso país. Por quê? 
Nayara: Eu acredito que dois fatores podem ser considerados principais, o primeiro é atribuir a solução de um problema que envolve a mudança de uma cultura machista que considerou, e ainda considera, a mulher como uma propriedade do homem a uma legislação. Antes da Lei Maria da Penha o Brasil havia adotado legislações portuguesas que permitiam a aplicação de castigos físicos dos maridos, pais e irmãos às mulheres e até 2003, quando a Lei 11.340 é publicada a agressão física no contexto íntimo era considerada um crime de menor potencial ofensivo. Ou seja, apenas a mudança no texto da lei não provoca uma mudança automática das atitudes, nem a sanção que vem com ela muda a cultura machista. O enfrentamento da violência contra a mulher precisa envolver a sociedade, as escolas e discutir os imaginários em circulação que pregam que a mulher é inferior apenas por ser mulher. Outro fator que dificulta a eficácia da Lei Maria da Penha tem relação com o cumprimento do que a lei prevê. Por exemplo, o número de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) no país ainda está muito abaixo de uma cobertura total. Em 2019 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, divulgou que apenas 7% dos municípios brasileiros contam com o serviço. Mesmo com a atualização das medidas protetivas de urgência, muitos ainda são os casos de mulheres que não recebem o retorno do pedido no prazo previsto em lei, isso combinado com uma ausência de abrigos para quando as vítimas precisam se retirar da situação de violência. 
O LIBERAL: Por que é importante nomear as violências de gênero?
Nayara: O uso do conceito “violência de gênero” passou a ser defendido pelos movimentos feministas no Brasil a partir da década de 1990 para demarcar uma realidade específica de que a violência contra a mulher é um problema complexo e amplo, e não deveria ser tratado só no ambiente familiar. Foi nesse contexto que aquele ditado “entre marido e mulher não se mete a colher” passou a ser contestado. Essa escolha também foi utilizada para discutirmos que não basta a mulher desejar sair da situação de violência para que ela consiga sair. São muitas as razões que impedem uma mulher que está em um relacionamento abusivo repetindo o ciclo de violência se livre disso envolve um desejo de proteção aos filhos em alguns casos, fragilidades que as próprias violências propiciaram, questões econômicas e muitas outras. Assim, quando se nomeia as violências em suas especificidades: física, psicológica, patrimonial, moral e sexual estamos ao mesmo tempo auxiliando as mulheres em situação de violência a compreender as situações em que elas podem estar envolvidas, ao mesmo tempo em que contestamos abusos que já foram tradicionalmente aceitos. O estupro marital, que é crime previsto na Lei Maria da Penha, por exemplo, foi durante muitos anos ignorado como violência e muitas mulheres casadas que eram abusadas dentro do casamento não sabiam que tinham o direito a seus corpos e a seus desejos e que o desrespeito a isso pode e deve ser denunciado. 
O LIBERAL: As mulheres negras são as que mais sofrem violência de gênero, conforme dados da pesquisa “Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil”. Isso é resultado do racismo estrutural no país? 
Nayara: Com certeza! O racismo estrutural e o institucional são fundamentais para analisarmos a violência de gênero que vitimiza mulheres negras. Tem um dado do Atlas da Violência de 2013 que ilustra muito essa realidade. Neste levantamento observou-se que na primeira década dos registros de ocorrência de violência contra a mulher depois da Lei Maria da Penha enquanto o número de assassinatos de mulheres brancas havia diminuído em 9,8%, o de mulheres negras havia aumentado em 54%. Aqui fala-se em assassinatos porque a Lei de Feminicídio só começa a valer a partir de 2015, mas mesmo em 2003 já se tinha a percepção que onde as mulheres mais são mortas é no ambiente doméstico. Quando pensamos na condição das mulheres negras, a ausência de serviços de atendimento e apoio em lugares periféricos e com horários reduzidos de atendimento apresenta um recorte econômico, que estruturalmente, no país também envolve grande parte da população negra. E isso é um desafio. Contudo, existem outros fatores como a violência policial contra os corpos negros que afasta mulheres negras de fazerem o registro e o grande número de negativa de registro que a própria polícia apresenta quando essas mulheres procuram as delegacias o que foi discutido no “Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil”, divulgado pelo IPEA em 2013. Existe um encadeamento de racismos repetidos que reforçam o imaginário preconceituoso sobre as mulheres negras em relação à exploração econômica e sexual que se repete em vários níveis e impede que elas sejam acolhidas pelas instituições. Esse é um tema muito complexo porque envolve ainda permanências do imaginário da escravidão no Brasil quando a violência física e sexual contra as mulheres negras era permitida por lei, então mesmo as mulheres negras sendo aquelas quem mais registram denúncias elas também são aquelas que menos conseguem acesso aos aparatos de proteção. 
O LIBERAL: Quais os principais caminhos devemos avançar para combater a violência de gênero?
Nayara: A discussão pública do que é a violência de gênero, o machismo, o racismo, a misoginia nas escolas e nos meios de comunicação é um desses caminhos. As leis são muitas das vezes resultado de movimentos ativistas que estudam os eventos e fazem proposições de solução, e no caso da Maria da Penha foi essa a experiência. Divulgar e discutir os eventos não como casos isolados de violência, mas como uma cultura social a ser mudada que envolve a interrupção da violência no momento em que ocorre, a divulgação do que é o ciclo de violência e como ele atua, os canais para a mulher pedir ajuda, o envolvimento do agressor em uma educação regenerativa para que ele também não repita o comportamento são estratégias válidas. E precisamos como pessoas e como profissionais nunca culpabilizar ou julgar a moral da mulher em situação de violência.

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