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Carta aos Tempos
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Em 1733, em Vila Rica, nascia o barroquismo como arte e vida

Mauro Werkema*

Há 290 anos, em maio de 1733, realiza-se em Vila Rica, então capital nascente da Capitania das Minas do Ouro, uma alegre e faustosa procissão para inauguração da Igreja de N.S. do Pilar. A festa, profana e religiosa, chamou-se de “Triunfo Eucarístico” e imortalizou-se na História de Minas Gerais e na literatura do Barroco Mineiro como a primeira manifestação do barroquismo, que já se mostrava como “estilo de arte e de vida”, na expressão de Affonso Ávila. A procissão, ostentatória e multicolorida, expressa o fenômeno religioso, artístico e sociológico do fenômeno cultural mineiro e inaugura, por seu simbolismo e elementos figurativos, o famoso “Barroco Colonial Mineiro”, hoje reconhecido mundialmente como fenômeno e categoria artística singular.

A festa, de três dias, teve seu ponto marcante num grandioso desfile, faustoso, alegre e vistoso, coreográfico e teatral, com aristocracia e povo, eclesiástica e popular, com direção teatral, a igreja exibindo suas riquezas, paramentos, cruzes procissionais, turíbulos e incensos, luminárias, prata e ouro, música, mas também com o povão, mistura de pobres, ricos e escravos, com lundus, danças, cavaleiros, num colorido visual e humano. Mistura de procissão e carnaval, exibiu alegorias e ornatos, mas também os elementos simbólicos da Igreja Católica que se reformava pela Contrarreforma do Concílio de Trento e busca nova hegemonia. Esta festa foi reproduzida em 1983, em Ouro Preto, quando se comemorava os 250 anos do “Triunfo Eucarístico”. E até hoje, na Semana Santa, se revela o caráter festivo desta sociedade. Manifestava-se, Junto ao regozijo pela inauguração da Matriz do Pilar, o caráter da sociedade da jovem cidade mineradora, suas lutas pelo domínio da terra e contradições sociológicas, religiosas e humanas. E já enfatizava o primado do visual, característica básica do barroco, prenunciando o surto de criatividade artística e cultural da Vila Rica e o esplendor do acervo que nos legou, hoje inscrito pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. 

A sociedade que se formava na corrida pelo ouro, irrequieta e atormentada, já revela o domínio da Igreja Católica reformista pelo Concílio de Trento e suas relações com o poder colonial. O homem de Vila Rica, dividido, refletia as contradições entre o “céu e a terra”, o dilema existencial do homem do Barroco: o chamado da Igreja opressiva, que ameaçava com a fé, o inferno e a infalibilidade das Sagradas Escrituras. E a Inquisição. Mas já se descria do Absolutismo e se observava no mundo real, que nascia com a Ilustração e o Iluminismo despertado pelo enciclopedismo francês. 

É nesta angústia existencial que se fermenta a criatividade artística, que em Aleijadinho (1737/1814) tem expressão maior: sofrido, mulato, mártir e artista, elabora a arte da suntuosidade dos templos e a preciosidade dos altares, mas já com singularidade própria, liberta de cânones do barroco inicial trazido de Portugal. Mas seus temas situam-se entre vida e morte, adquirem expressão própria, na liberdade criativa que foge ao rigor do estilo do catolicismo inquisitório e ameaçador. O barroco de Vila Rica é ideológico por suja intencionalidade, atua na reconquista dos fiéis atingidos pela reforma protestante e na sustentação do absolutismo.

A singularidade e a riqueza do patrimônio artístico e cultural mineiro, o edificado e o acervo plástico, encontram explicação sociológica nesta criatividade alimentada pela angústia existencial do homem Barroco. O artista, sua arte, impregnam-se da agonia do instante e, por isto, se tornam únicos. “Vida es sueno”, peça de Calderon de La Barca (1600/1681) encenada em Vila Rica na preparação do grande desfile do “Triunfo Eucarístico”, vê o mundo como um “grande teatro”, uma grande ópera, com seus traços lúdicos, teatrais, ritualísticos e ornamentais, que encanta e eleva, mas também estimula o pensamento e a dramaticidade da vida e do mundo. Esta foi a Vila Rica inaugural, mas que fundamenta e enseja heranças, práticas, festas, visões do mundo e o temperamento do mineiro que ainda preza suas tradições.

Mas será também por isto tudo que Germain Bazin, diretor do Loure, diz: “A descoberta das Minas enriquece Portugal, mas traz o fermento que o levará a perder a Colônia”.

*Jornalista e historiador (maurowerkema@gmail.com)

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